STF vira mais um ano sem julgar isenções fiscais dos agrotóxicos
Único a votar, Edson Fachin considera inconstitucionais as isenções de ICMS e IPI. Mas Gilmar Mendes pediu vista, adiando julgamento por tempo indeterminado
Por Cida de Oliveira, da RBA.
Publicado originalmente em 05/11/2020.
São Paulo – O Supremo Tribunal Federal (STF) vai virar mais um ano sem decidir se são constitucionais as isenções de IPI e a redução da base de cálculo do ICMS dos agrotóxicos, como pede o Psol por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.553, apresentada em 29 de junho de 2016. Único a apresentar o voto, o ministro Edson Fachin, relator da ação, entende que são inconstitucionais. Mas o ministro Gilmar Mendes pediu vista do processo na terça-feira (3), logo após divulgação da íntegra do voto de Fachin. Com isso o julgamento foi interrompido e ainda não há data para a retomada.
É a segunda vez que o julgamento da isenção aos agrotóxicos é suspenso no STF. Em 19 de fevereiro, quando estava prevista a leitura do voto do relator Fachin, o então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, adiou a agenda por causa da posse da ministra Cristina Peduzzi como presidenta do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Comida sem agrotóxicos
Em seu voto, Fachin pondera sobre diversos pontos. Entre eles, a falta de relação de causa e efeito entre a desoneração tributária e a redução do preço dos alimentos ao consumidor e, consequentemente, a segurança alimentar. “O consumo de agrotóxicos no Brasil é concentrado em quatro commodities, cujo preço é determinado pelo mercado mundial. Em 2014, a soja representava 49% do uso dos produtos no Brasil; a cana, 10,1%; o milho, 9,5%; e o algodão, 9,1%, o que soma 77,7%”, destaca o ministro em seu voto. Ou seja, grande parte do agrotóxico vai para ração animal, etanol e indústria têxtil.
Outro está relacionado a uma desoneração tributária seletiva, a partir de mercadoria e processo produtivo menos nocivo à saúde e meio ambiente. E a criação de um fluxo de receita que poderia ser direcionado para mitigar os impactos ambientais dos agrotóxicos, como práticas agrícolas mais sustentáveis e promoção de pesquisa e desenvolvimento de alternativas tecnológicas menos nocivas, como ocorre na Dinamarca e na França. “O objetivo da tributação não é apenas fazer com que os poluidores paguem pelos danos causados (princípio do poluidor-pagador), mas também induzir mudanças de comportamento, incentivando o uso de produtos menos nocivos”, aponta Fachin.
A agroecologia é destacada por Fachin como um novo paradigma de desenvolvimento agrícola, “com fortes conexões conceituais com o direito humano à alimentação, como também demonstra resultados para avançar rapidamente no sentido da concretização desse direito humano para muitos grupos vulnerabilizados em vários países”. Ele lembra a Conferência Internacional sobre a Agricultura Orgânica e Segurança Alimentar, organizada pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 2007, que apontou para a necessidade de substituir a agricultura convencional. O estímulo à agricultura sustentável voltou a ser recomendado em 2010, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.
Chantagem do agronegócio
As ponderações de Fachin estão em sintonia com as demandas e argumentos dos movimentos sociais, organizações e instituições que defendem uma agricultura sustentável, com bases agroecológicas, livre de agrotóxicos e transgênicos. E que para comprovar essa viabilidade têm produzido uma série de estudos que desmentem argumentos frágeis e até chantagens do agronegócio, como a falácia do aumento de preços de alimentos com a desoneração. Ao site Jota, a assessoria da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) disse que a previsão é que o fim da desoneração de IPI e ICMS aumentaria em 9,5% o IPCA anual devido ao aumento “importante” do custo da produção de alimentos no país.
No início de outubro, pesquisadores da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e do Instituto Ibirapitanga divulgaram estudo mostrando que a desoneração não tera impactos sobre a maior parte da agricultura familiar, que produz mais de 70% dos alimentos. “Boa parte desses produtores não terão impactos nos seus custos, na lucratividade e tampouco mudarão o preço do seu produto agrícola porque não utilizam agrotóxicos”, destacaram em artigo.
Além disso, os autores da pesquisa acreditam que a taxação e um eventual aumento do preço dos agrotóxicos não pode ser considerado uma questão de insegurança alimentar. Pelo contrário, tende a tornar mais atrativos outros métodos de produção agrícola e de controle de pragas sem o uso de agrotóxicos. E, em última instância, uma equiparação entre os preços dos produtos convencionais e os orgânicos ou agroecológicos seria benéfica, aumentando sua demanda.
“Se o objetivo é reduzir os preços dos itens da cesta básica, então por que os governos não concedam benefícios fiscais diretamente aos produtos que a compõem?”, questiona um dos advogados do Psol na ADI 5.553, o professor de Direito Ambiental João Alfredo Telles Melo. Em debate online promovido nesta quarta-feira (4) pela Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, ele disse que a isenção de IPI e a redução da base de cálculo de ICMS, que chega a ser zerada em alguns estados, beneficia especialmente os grandes produtores de commodities do país, e não os responsáveis por prover a alimentação dos brasileiros.
Buraco negro
O Psol estima em R$ 10 bilhões anuais a renúncia fiscal. Um montante maior que o dobro do que o Sistema Único de Saúde (SUS) gastou em 2017 para tratar pacientes com câncer – um entre tantos males letais causados pelos agrotóxicos. Os impactos ambientais são igualmente incalculáveis.
A certeza é que não se sabe ao certo as cifras do benefício total à indústria de agrotoxicos. Isenta do pagamento das contribuições para o financiamento do PIS e Cofins, recebe ainda benefícios indiretos. O defensor Marcelo Carneiro Novaes, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que estuda o tema a fundo, lembra que a legislação permite abater despesas com agrotóxicos no imposto de renda pessoa física do produtor rural e do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) nos títulos do agronegócio (Barter). Só a dedutibilidade no IR é próxima de R$ 6 bilhões. E de R$ 1 bilhão a de IOF, segundo ele.
Há ainda regimes especiais aduaneiros que regem as companhias que fazem transações entre os fabricantes e as empresas compradoras em operações de exportação e importação, as chamadas tradings. E também a importação de insumos destinados à produção de bens primários para exportação. É o caso do Drawback. “Não pagam nem tributo nem imposto de importação, não pagam nada no país e alguns agrotóxicos estão no regime de Drawback. Isso é um buraco negro. Financeirização”, disse à RBA em fevereiro, para uma série de reportagens sobre o tema.
Agrotóxicos em excesso
Elogiado, o voto de Fachin foi insuficiente para manter os ânimos em relação ao julgamento. Autor do pedido de vista, o ministro Gilmar Mendes e seus familiares têm propriedades rurais no Mato Grosso, onde praticariam a agricultura baseada no uso de transgênicos e agrotóxicos.
A família foi alvo de cinco ações por danos ao meio ambiente movidas pelo Ministério Público de Mato Grosso (MPMT). Entre os processos estão o por uso descontrolado de agrotóxicos e plantio irregular de transgênicos junto a nascentes. As primeiras ações, de 2017, são relativas a duas fazendas.
Em agosto, o Tribunal de Justiça do MT negou pedido do Ministério Público estadual, que pretendia obrigar Mendes e seus irmãos a implementarem medidas para mitigar eventuais danos ambientais identificados na Fazenda São Cristóvão, no município de Diamantino.
Segundo o MP-MT, a propriedade de 760 hectares faz divisa com a Área de Proteção Ambiental Estadual Nascentes do Rio Paraguai. No TJ, o Ministério Público citou que há um decreto estadual que prevê a adoção de práticas de uso racional dos recursos naturais e diminuição no uso de agrotóxicos em área de proteção ambiental – o que teria sido sido descumprido por Gilmar e seus irmãos.
Glifosato
Preocupa ainda o fato de o novo ministro do STF, Kassio Nunes Marques, que toma posse hoje (5), para a vaga do ministro Celso de Mello, teria um perfil pró-agrotóxicos. Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, ele cassou, em setembro de 2018, quando era vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) uma liminar que suspendia o registro de produtos à base das substâncias glifosato, tiram e abamectina.
A liminar havia sido concedida pela juíza Luciana Raquel Tolentino, da 7ª Vara Federal do Distrito Federal, em atendimento ao Ministério Público Federal (MPF). Os procuradores pediam a reavaliação toxicológica das substâncias, uma vez que estudos mais recentes apontavam um provável aumento em taxas de mortalidade devido ao seu uso.
O então desembargador, que atendeu a Advocacia Geral da União (AGU) e o lobby dos ruralistas, disse que suspender os registros causaria “lesão à ordem pública”, por tirar as substâncias do mercado de maneira “abrupta, sem a análise dos graves impactos que tal medida trará à economia do país e à população em geral”.