A história por trás da pulverização aérea de inseticidas

STF julga parcialmente constitucional trecho de lei que permite que aviões despejem substâncias químicas nas cidades com a justificativa de combater o mosquito transmissor da dengue, zika e chicungunha. Procuradoria Geral da República contestava medida por afrontar o direito à saúde dos brasileiros

Por Julia Neves – EPSJV/Fiocruz em  23/09/2019

Chegou ao fim um imbróglio jurídico que envolve a pulverização aérea de inseticidas no combate ao mosquito Aedes aegypti e se arrasta desde 2016. Naquele ano, a Procuradoria Geral da República (PGR) apresentou a ação direta de inconstitucionalidade nº 5.592  contestando um trecho da lei 13.301/16, que autoriza a dispersão de substâncias químicas em situações de iminente perigo à saúde pública por causa do risco de transmissão dos vírus da dengue, da chicungunha e da zika. Passados três anos, no dia 11 de setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi parcialmente desfavorável ao pedido da PGR, validando o despejo por aeronaves nas cidades. O STF, entretanto, reforçou condições que já estavam presentes na lei, determinando que a pulverização só poderá acontecer mediante permissão das autoridades sanitárias e ambientais, e comprovação científica de sua eficácia.

A ausência de pesquisas que comprovem a eficácia da dispersão aérea de inseticidas para combate ao mosquito foi justamente a base da argumentação da ADI, apresentada pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que também chamou atenção para os potenciais riscos à saúde da população e ao meio ambiente”. Segundo Janot, a permissão afronta o direito à saúde dos brasileiros. “A pulverização aérea de produtos químicos, além de não contribuir de maneira eficaz para combater o Aedes, provoca importantes malefícios à saúde humana”, diz o texto da ação direta de inconstitucionalidade, que alega a violação do direito ao ambiente equilibrado previsto no artigo 225 da Constituição Federal.

Assim como a PGR, especialistas alertam para a insustentabilidade do modelo de enfrentamento de arboviroses centrado no mosquito e no controle químico. Segundo eles, além de gerar riscos à saúde e ao meio ambiente, o uso de inseticidas no combate ao inseto pode ter contribuído para a manutenção dos altos níveis de infestação do Aedes país afora. Eles citam pesquisas que mostram que esses animais são capazes de se adaptar, desenvolvendo resistência aos venenos.

Entenda o trâmite da ação

Em janeiro 2016, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a epidemia de zika como emergência pública internacional e o Brasil estava no centro das atenções graças aos casos de microcefalia em bebês causados pelo vírus, a então presidente Dilma Rousseff enviou ao Congresso Nacional uma medida provisória (712/2016) que apontava ações a serem tomadas pelas autoridades públicas quando fosse verificada uma “situação de iminente perigo” pela presença do Aedes aegypti. Durante a tramitação da MP, o deputado federal Valdir Colato (MDB-SC)  apresentou uma emenda para incluir na lista a permissão da pulverização aérea de inseticidas para o controle do inseto.

A inclusão da emenda foi visto por quem acompanhava a tramitação da MP como resultado do lobby ruralista, especificamente do Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag). O alerta foi dado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) que, em abril daquele ano, publicou uma nota se posicionamento contra a pulverização aérea de inseticidas para controle de vetores. “Os setores interessados em vender mais agrotóxicos e ampliar o número de aeronaves agrícolas é que estão por trás dessa medida, que não tem qualquer respaldo da área da saúde pública. São interesses econômicos a despeito de qualquer tipo de parecer ou argumentação dos setores responsáveis pela saúde pública em nosso país. São esses que estão pressionando para vender mais veneno”, afirma  o assessor da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) da Fiocruz, André Burigo, que participou pela Abrasco da mobilização contra a emenda de Colato.

Na nota, os pesquisadores explicavam que as substâncias que poderiam, literalmente, cair do céu  apresentam elevado risco sobre a saúde. Por trás dos nomes complicados – fenitrotiona, nalede, lambda-cialotrina e malation – havia um histórico de contestação em outras partes do mundo. A fenitrotiona e o nalede, por exemplo, não podem ser usadas na União Europeia. A lambda cialotrina, lembravam os cientistas, era um dos componentes da formulação do produto pulverizado por avião no caso que chocou o país e atingiu uma escola em Lucas do Rio Verde (GO) intoxicando quase cem pessoas, entre elas crianças. Finalmente, eles lembravam que o malation foi considerado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), ligada à OMS, como provável cancerígeno humano.

MP virou lei

Mas a emenda foi aprovada pelo Congresso e, em junho de 2016, já durante o governo Michel Temer, a lei 13.301 foi sancionada contrariando não só a análise da Abrasco e de outras entidades científicas, como também um parecer de área técnica do Ministério da Saúde. O documento ressaltava que a pulverização aérea poderia aumentar o risco de contaminação da população e do meio ambiente pelos produtos utilizados. Assinado pelo Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador, o texto considerava que nem mesmo uma situação emergencial justificava a medida. citando “os riscos associados à exposição da população aos agrotóxicos, a potencial contaminação de corpos hídricos, alimentos e produções orgânicas e agroecológicas e o desequilíbrio ecológico causado pela inespecificidade dos inseticidas”.

Foi justamente esse trecho da lei que foi questionado pela PGR, por meio da ação direta de inconstitucionalidade. Segundo a advogada Thayssa Rodrigues, pesquisadora no Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Letaci/UFRJ), explica a judicialização do caso. “A ADI é interposta quando lei ou ato normativo contraria a Carta Magna. A Constituição possui posição hierárquica mais elevada dentro do sistema [legal]. Ela é o fundamento de validade de todas as demais normas e, por isso, é necessário que estas estejam em consonância com a Constituição”, ressalta. Na ação, a PGR apresentou estudos técnicos e posicionamento de entidades públicas e privadas contrárias à pulverização de produtos químicos com os mesmos princípios ativos daqueles utilizados na agricultura por aeronaves como mecanismo de combate ao Aedes.

A votação

A votação da ADI aconteceu no plenário do STF no dia 11 de setembro. A ação já havia entrado na pauta do pleno em abril, mas saiu porque os ministros Celso de Mello e Dias Toffoli, que é presidente do Supremo, pediram ‘vistas’, ou seja, mais tempo para elaborar seus votos.

Iniciada a sessão, Celso de Mello votou pela procedência parcial da ADI e propôs excluir da lei, por inconstitucionalidade, a expressão “por meio de dispersão por aeronaves”. Segundo ele, a medida “transgride o princípio da precaução, que busca neutralizar ou minimizar risco potencial à vida e ao meio ambiente”. Diante da incerteza científica, Celso de Mello pontuou que é preciso se posicionar em favor do ambiente. Ricardo Lewandowski acompanhou esse entendimento.

Relatora da ADI, a ministra Carmem Lúcia foi a favor da inconstitucionalidade desse trecho da lei. “Tem-se quadro de insegurança jurídica e potencial risco de dano ao meio ambiente e à saúde humana pela previsão normativa de controle do mosquito Aedes aegypti pela dispersão de produtos químicos por aeronaves”, escreveu.

Já Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Luiz Fux e Alexandre de Moraes consideraram a medida constitucional. Para Alexandre, “não se pode proibir uma técnica de combate de forma absoluta, pois se não for aprovada pelas autoridades sanitárias e se não for eficaz cientificamente a medida não será adotada”. Como nenhum dos posicionamentos alcançou maioria, o julgamento foi decidido pelo chamado voto médio – entendimento que representa um meio termo entre os votos apresentados. Nesse caso, as posições defendidas por Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber e Dias Toffoli, que consideraram que as aeronaves só poderão ser usadas com cuidados mínimos, mediante autorização prévia dos órgãos sanitário e ambiental.

Toffoli observou a necessidade de adoção de estratégias para erradicar as epidemias causadas pelo mosquito no país. No entanto, salientou que não existem estudos suficientes comprovando o prejuízo à saúde devido ao uso de mecanismos de controle vetorial por meio de dispersão por aeronaves. Além disso, pontuou que não existe comprovação da eficácia da pulverização aérea no combate das doenças transmitidas pelo mosquito. Em sua fala, o ministro ainda destacou o aumento de 600% da incidência da dengue no Brasil entre 2018 e 2019, número divulgado pelo Ministério da Saúde naquele mesmo dia.  Como a decisão não cabe recurso, a lei segue valendo, com as ressalvas levantadas pelos ministros.

A votação foi comemorada pelo presidente do sindicato aeroagrícola, Thiago Magalhães, que, em nota, considerou “uma vitória do bom senso e de quem sofre com a dengue”. Em fevereiro de 2019, ele já havia solicitado a inclusão do Sindag no processo que envolveu a ADI como amicus curiae, categoria que serve para entidadess cujo conhecimento ou relação com o que será decidido  pode contribuir com a discussão, o que foi aceito pelo plenário. No Supremo, Magalhães reiterou a posição do sindicato de que a aviação não substitui o controle de focos de mosquito pela população e o investimento em saneamento básico. “As aplicações aéreas, na hipótese de serem testadas e aprovadas, seriam para áreas de epidemia ou de grandes infestações, onde se precisa reduzir rapidamente a quantidade de mosquitos a níveis em que o controle de focos pela população volte a ser eficiente”.

Na contramão

A validação da pulverização de substâncias químicas na esfera federal vai na contramão de uma lei estadual que proíbe essa prática em zonas rurais, aprovada em janeiro deste ano de forma pioneira no Ceará. Luiz Claudio Meirelles, pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz afirma que, apesar de cada estado ter o poder de legislar sobre essa prática, a decisão do STF pode ser usada como um argumento a mais para enfraquecer a legislação cearense.

Em várias partes do mundo, essa prática também não é utilizada, destaca Meirelles. Na Europa, a legislação é severamente restritiva: “A pulverização para o combate a pragas específicas é usada com elevadíssima restrição, justamente por problemas de deriva e contaminação, ainda mais num momento em que se discute a extinção em massa de abelhas. Como é uma tecnologia que espalha veneno para tudo quanto é lado, lá só pode ser usada em casos raros”.

Já nos Estados Unidos, reconhece ele, a pulverização aérea de agrotóxicos é mais comum. Em setembro de 2016, as operações com aviões aconteceram em alguns bairros de Miami após confirmações de casos de zika. “Mas foi muito contestada essa decisão”, destaca Meirelles. “Apesar dessa prática não ser ideal, o sistema de controle nesses países desenvolvidos são muito mais rigorosos, com fiscalização efetiva e uma série de situações que diminuem o perigo”, ressalta.

Quem regula?

A lei diz que a pulverização só poderá acontecer mediante autorização prévia dos órgãos sanitário e ambiental. Mas que órgãos seriam esses? André Burigo afirma que depende do âmbito e do local da pulverização e exemplifica: “Em parques nacionais, de grande interesse de biodiversidade, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) teria que se posicionar sobre isso. Já no âmbito estadual, talvez os órgãos ambientais devessem se manifestar”.

Na área da saúde, ele explica que o processo também modifica de acordo com cada caso. Segundo Burigo, tendo em vista que a maioria dos municípios brasileiros tem menos de 50 mil habitantes, a capacidade de analisar e tomar decisões ficaria no âmbito das secretarias estaduais de saúde. “É o que a gente viu com a lei da pulverização aérea. Vários conselhos estaduais de saúde se manifestaram contra ainda em 2016, quando a proposta foi inserida na MP”, relembra. 

Diversos prejuízos

Para Meirelles, a discussão sobre pulverizar áreas urbanas é uma forma de enfraquecer movimentos de luta contra os agrotóxicos. “Se você libera a pulverização em áreas urbanas, você está passando um recado para a sociedade de que agrotóxico não é um problema. Se não tem problema pulverizar sobre uma área que tem milhares de pessoas, por que teria em áreas rurais que são pouco povoadas? É banalizar o perigo”, lamenta. Burigo segue a mesma linha: “Se até o STF considera constitucional, não faz sentido pensar em críticas e nos impactos à saúde nas pulverizações das lavouras”.

E quanto aos impactos? Do ponto vista da saúde humana, Meirelles considera trágico pensar na possibilidade de pulverizar malation – substância considerada cancerígena – em cima de uma população inteira. “Pulverizar de avião, você afeta muito mais as pessoas do que os mosquitos que você quer acabar. A chuva de inseticidas só agravará ainda mais a situação de exposição da população a agentes tóxicos”, aponta. Para ele, do ponto de vista ambiental a chuva de substâncias químicas é  “outra tragédia”, pelo risco de se atingir áreas de reservas florestais e proteção permanente. “É uma tecnologia que não agrega, é pouco efetiva e extremamente perigosa para tudo e todos”, denuncia.

Mesmo aprovada, a lei deve ficar na gaveta porque, segundo Meirelles, diversos estados, além do Ceará, tem se manifestado contra ela. “A pulverização aérea é indiscutível, essa lei não tem a menor razão de ser. Dificilmente os mosquitos serão atingidos ao se jogar veneno em cima das cidades”, ressalta, apontando o que deve ser feito: “O controle aéreo é muito complicado porque o mosquito pode ficar escondido dentro de casa, escondido em outros lugares. É preciso ir atrás do foco, das larvas”. Para ele, a melhor solução é investir em saneamento básico e métodos terrestres de controle que atingem diretamente os focos do mosquito.

Lógica “mosquitocêntrica”

As ações do Ministério da Saúde, segundo Burigo, têm como foco o animal vetor de doenças e não as causas determinantes da ocorrência desse vetor. “É uma política “mosquito-centrada”, que é químico-dependente”, analisa o pesquisador, apontando ainda que não há estudos que comprovem a eficácia da prática aérea para combater epidemias. “Temos, sim, estudos mostrando que a deriva, ou seja, o percentual daquilo que foi aplicado e que não atinge o alvo, pode chegar a 99%. Isso porque a pulverização aérea depende de vento, temperatura, distância, são muitos elementos”, ressalta. Outros estudos, continua ele, mostram que essa deriva pode chegar até 30 quilômetros: “Estamos falando de uma pulverização dentro da cidade, onde o avião não vai pulverizar na mesma altitude que faz na lavoura porque tem prédios, redes de luz. Não tem como reduzir riscos nessa situação”.

O levantamento do Ministério da Saúde divulgado no mesmo 11 de setembro aponta que o Brasil pode está diante de uma nova epidemia de dengue. Entre 30 de dezembro de 2018 e 24 de agosto de 2019, foram registrados 1,4 milhão de casos da doença no país – um aumento de 599% na comparação com o mesmo período do ano passado. São, em média, 6.074 novos registros Segundo Meirelles, essa explosão está associada à linha social de desorganização e enfraquecimento do SUS. “Quando você olha a dengue explodindo em níveis muito altos, não dá para descolar isso da questão do sucateamento do Sistema Único de Saúde”. E explica: “As pessoas vão morrer mais de dengue, de infecção, de câncer, acidentes que não foram adequadamente tratados. A mortalidade se eleva. Então, fortalecer o SUS é fundamental para você garantir qualidade de vida e sucesso nos tratamentos”.

Burigo destaca ainda os prejuízos trazidos pela Emenda Constitucional 95 – aprovada em 2016 –, que congela os gastos públicos em saúde até 2036. “De lá para cá, tivemos um aumento no número de desempregados que, sem ter como pagar seus planos de saúde, migraram para o SUS. E o SUS, por sua vez, tem cada vez menos recursos”, aponta, ressaltando diversas ações que contribuíram para gerar, segundo ele, “um cenário de fragilização de ações de fiscalização e de possibilidades de se ter uma atuação forte de regulação sobre propostas como essa”: “Só nesse ano, o governo já bateu o recorde de liberação de agrotóxicos. E a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] modificou o sistema de classificação de agrotóxicos, claramente para atender os interesses da indústria. Se juntar as peças, a gente percebe um agravamento enorme de diminuição do poder regulatório do setor saúde. Vivemos uma ofensiva de setores ambiciosos que não respeitam os bens comuns, a saúde e o meio ambiente”.