O agrotóxico que matou 50 milhões de abelhas em Santa Catarina em um só mês

Uma investigação em Santa Catarina revelou que cerca de 50 milhões de abelhas morreram envenenadas por agrotóxicos em janeiro deste ano.

Aline TorresDe Florianópolis para a BBC News Brasil

Os testes – pagos com recursos do Ministério Público estadual – mostraram que a principal causa foi o uso do inseticida fipronil, usado em lavouras de soja na região.

A substância foi proibida em países como Vietnã, Uruguai e África do Sul após pesquisas comprovarem que ela é letal para as abelhas.

Santa Catarina é o maior exportador de mel do Brasil e tem 99% de sua produção certificada como orgânica. Os produtores temem que a mortandade gere dúvidas sobre a qualidade do mel catarinense e abale seus negócios.

Ao inspecionar seus apiários, em janeiro, produtores do Planalto Norte catarinense – região onde as florestas nativas vêm perdendo espaço para o eucalipto – encontraram as abelhas dizimadas.

Entre os dias 22 e 31 de janeiro, a Cidasc (Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina), órgão do governo do Estado, coletou amostras de abelhas mortas nas duas cidades mais afetadas, Major Vieira e Rio Negrinho, e as enviou ao Ministério Público. As amostras também foram mandadas a um laboratório em Piracicaba (SP).

Os exames encontraram três agrotóxicos: o fungicida trifloxistrobina, o inseticida triflumuron, ambos fabricados pela Bayer, e, em maior quantidade, o inseticida fipronil, introduzido no país pela Basf — que deteve a patente do princípio ativo até 2008.

As duas empresas afirmam que seus produtos, se utilizados conforme as orientações, são seguros para o meio ambiente.

A Cidasc não responsabilizou nenhum produtor e considerou que a contaminação foi acidental.

“O impacto desses agrotóxicos é que eles são letais para as abelhas, agem diretamente no sistema nervoso central. As que não morrem durante o voo retornam adoecidas e contaminam toda a colmeia”, explica o agrônomo Rubens Onofre Nodari, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Os três agrotóxicos encontrados no laudo são classificados pelo Ministério da Saúde como classe dois, que significa “altamente tóxico”. A classificação varia de um, “extremamente tóxico”, a quatro, “pouco tóxico”. Apesar disso, o Brasil os libera para uso em lavouras.

“O Brasil anda em marcha à ré em comparação ao resto do mundo. Substâncias que provocam mortes em animais e pessoas continuam no mercado. Sem contar que, somente neste ano, de janeiro a agosto, foram liberados 290 novos agrotóxicos. 40% desses venenos são proibidos em outros países”, diz a promotora Greicia Malheiros, que preside o Fórum de Combate aos Agrotóxicos e Transgênicos, órgão integrado por 80 instituições públicas e privadas.

Nos últimos três anos, foram liberados 1.587 agrotóxicos no país. De acordo com a Anvisa, 40% dessas substâncias estão classificadas como extremamente ou altamente tóxicas.

De 1990 até 2016, o consumo nacional de agrotóxicos cresceu em 770%, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), sendo que a área agrícola do país cresceu somente 48%.

Floração da soja

O fipronil é bastante utilizado nas lavouras para matar insetos como o bicudo e costuma ser pulverizado por aviões monomotores, o que é proibido. Ele também é aplicado na terra, antes do plantio, e nas sementes.

Segundo a Cidasc, os venenos foram pulverizados durante o período de floração da soja, quando há uma recomendação para que os produtores utilizem o bom senso e não envenenem as flores, pois haverá visita de polinizadores. Não há proibição ao uso, entretanto.

O professor Nodari, da UFSC, diz que as primeiras abelhas a morrer são as “operárias mais experientes que saem de manhã para vasculhar o território e procurar flores”.

“Quando encontram néctar, elas voltam para a colmeia e com uma dança comunicam a direção e a distância das flores. A flor de soja não é a preferida das abelhas, mas, com o desmatamento e a monocultura, elas têm cada vez menos opções”, disse.

Quase meio bilhão de mortes

Segundo a Repórter Brasil e a Agência Pública, o fipronil e neonicotinoides (inseticidas derivados de nicotina) foram responsáveis pela morte de 400 milhões de abelhas no Rio Grande do Sul, 45 milhões no Mato Grosso do Sul e 7 milhões em São Paulo entre o Natal de 2018 e fevereiro deste ano.

Os laudos foram feitos pelas secretarias de Agricultura dos Estados com apoio de universidades. Os estudos mostraram que 80% das abelhas mortas tinham essas substâncias no organismo.

“A questão pode ser ainda mais preocupante se considerarmos que, nesse cálculo de quase meio bilhão de abelhas mortas no Brasil em um curto período de três meses, as abelhas silvestres sequer entraram na conta”, disse o professor Nodari.

avião agrotóxico
Image captionPulverização de agrotóxicos por aviões pode afetar abelhas que habitem florestas
vizinhas às plantações

Sumiço das abelhas

Outro fenômeno que tem preocupado biólogos no Brasil e no exterior é o desaparecimento de abelhas operárias, que deixam para trás a colônia e sua rainha com muitas crias famintas.

O sumiço tem vários nomes populares, como doença de maio, colapso de outono e síndrome do ácaro vampiro.

Nos EUA, pesquisadores o chamam de CCD (Colony Collapse Disorder), uma desordem no sistema de navegação das abelhas provocada por agrotóxicos, que faz com que elas se percam.

Os EUA têm amplas pesquisas sobre o assunto, porque perderam 50% das abelhas em meio século, o que tem relação direta com o fipronil e os neonicotinoides.

No Brasil, o CCD foi registrado pela primeira vez na região de Altinópolis (SP) entre agosto e setembro de 2008. A região tem intensa produção de cana-de-açúcar com uso de neonicotinoides e fipronil.

Mel contaminado

De acordo com a Faasc (Federação das Associações de Apicultores e Meliponicultores de Santa Catarina), a mortandade atingiu mais de 200 apicultores, cujo mel é quase todo exportado para Alemanha e Estados Unidos. Apenas 10% da produção ficam no Brasil.

O secretário adjunto de Agricultura e Pesca de Santa Catarina, Ricardo Miotto, afirma que o mel contaminado foi jogado fora e representa um percentual pequeno da produção catarinense. “Temos 9,7 mil produtores e 315 mil colmeias em produção. As 50 milhões de abelhas afetadas corresponderiam a 1%”, disse.

O presidente da Faasc, Ênio Cesconetto, afirmou que os produtores têm receio de que esse episódio possa repercutir e cancelar o registro do mel como orgânico, o que afetaria as exportações. Santa Catarina está negociando para exportar mel para o Canadá.

“Não podemos correr o risco de exportar mel contaminado”, disse Cesconetto. Anualmente, são produzidas oito mil toneladas de mel em Santa Catarina.

“Este episódio não afeta o mercado do mel catarinense, que é considerado um dos melhores do mundo, visto que a quantidade não representa impacto na produção estadual, porém expõe a problemática da utilização indiscriminada e feita de forma incorreta de agrotóxicos”, diz Ivanir Cella, chefe da divisão de estudos apícolas da Epagri, vice-presidente da Confederação Brasileira de Apicultura e Meliponicultura e vice-presidente da Federação das Associações de apicultores e meliponicultores de Santa Catarina.

Em 2011, 30% das colmeias de Santa Catarina foram perdidas. Na época, porém, o motivo foi a proliferação de doenças causadas por fungos.

Queda na produção agrícola

Mortes de abelhas, principais polinizadoras da natureza, não afetam somente a cadeia do mel, diz o agrônomo Rubens Onofre Nodari, da UFSC.

“Sem a polinização das abelhas, a produção agrícola sofreria uma redução dramática, num diagnóstico conservador de 30% a 40%, mas há correntes de pesquisadores que falam em 73%, o que poderia gerar, inclusive, guerras por alimentos”, disse.

Ainda não houve pesquisas sobre a redução na produção agrícola de Santa Catarina por causa da mortandade de abelhas. Mas sabe-se que, sem elas, não haveria maçãs — importante cultura da região serrana, responsável pela segunda maior produção do país.

Em Sichuan, na China, as abelhas desapareceram. A polinização é feita por trabalhadores, os “homens-abelhas”. Eles sobem em árvores com uma pena de pássaro cheia de pólen para tocar as flores uma por vez.

O desaparecimento das abelhas na região, ocorrido há cerca de 20 anos, se deveu ao uso excessivo de agrotóxicos do tipo neonicotinoides.

Segundo o projeto Polinizadores do Brasil, 30% do valor anual da produção agrícola no nosso país dependem de polinizadores. Caso o serviço de polinização fosse pago, custaria em torno de US$ 12 bilhões por ano.

aplicação de agrotóxicos
Image captionA partir de 2020, Santa Catarina vai taxar agrotóxicos vendidos no Estado

Fipronil entrou no Brasil em 1994

De acordo com Dayson Castilhos, doutor pelo Departamento de Ciências Animais da Universidade Federal Rural do Semi-Árido com pesquisa sobre desaparecimento e morte de abelhas no Brasil, o fipronil foi descoberto em 1987 e comercializado a partir de 1993. No Brasil, conforme o Ministério do Meio Ambiente, foi regulamentado em 1994.

“Inicialmente se pretendia que o fipronil fosse mais um herbicida, característica da família dos azóis, mas se mostrou um potente inseticida”, disse o pesquisador.

Castilhou diz que o fipronil causa hiperexcitação neuronal nas abelhas, produzindo descargas elétricas que levam à paralisia e exaustão celular dos insetos.

Ele diz que a substância é altamente tóxica aos insetos em mínimas quantidades. “Processo semelhante ocorre com os neonicotinoides, a nova geração de agrotóxicos sintéticos”, disse.

Diante da comprovação dos malefícios do fipronil, o governo do Estado negocia internamente duas propostas que deverão ser incluídas no plano de gestão até o fim do ano.

A primeira é limitar o uso do fipronil a sementes – o que pode fazer de Santa Catarina o primeiro Estado do Brasil a restringir o uso do produto.

Outra medida seria exigir dos agrônomos que prescrevam uso de fipronil informação sobre a geolocalização das lavouras, para que fique no banco de dados do Estado. Se a plantação estiver próxima a colmeias, será emitido um alerta para que técnicos da Cidasc monitorem as abelhas.

Taxação de agrotóxicos

O governador de Santa Catarina, Carlos Moisés, eleito pelo PSL com 71% dos votos, surpreendeu a todos por ir em sentido contrário ao do presidente Jair Bolsonaro e criar uma medida provisória para tributação escalonada de agrotóxicos.

A medida passará a valer em janeiro do ano que vem. Produtos altamente e extremamente tóxicos passarão a ser tributados em 17%, conforme a alíquota do ICMS.

Produtos moderadamente tóxicos terão carga tributária equivalente a 12%. Produtos pouco tóxicos, 7%. Improváveis de causar dano agudo, 4,8%, e bioinsumos terão isenção.

A Tributação Verde, como foi batizada, é inédita no país e pretende incentivar uma agricultura saudável em Santa Catarina.

“A tributação não é ideológica, não serve para agradar direita ou esquerda. É uma questão de segurança alimentar e saúde pública. Não é lógico que o governo incentive, onerando de tributos, produtos que comprovadamente causam danos às pessoas e ao meio ambiente”, disse o governador.

Pesquisas internacionais

Em 2012, o World Conservation Congress lançou a resolução 127, que denunciava os neonicotinoides, o fipronil e outros inseticidas sistêmicos como prováveis causadores do CCD. Em 2013, a União Europeia baniu temporariamente os neonicotinoides clotianidina, imidaclopride e tiametoxam.

Em abril de 2015, a revista Science publicou um estudo da Escola de Saúde pública de Harvard, segundo o qual esses agrotóxicos são absorvidos pelas raízes e folhas e distribuídos por toda a planta, incluindo seu pólen e néctar.

A tese foi reiterada inúmeras vezes. Cientistas da Universidade de Sussex, no Reino Unido, também estudaram efeitos dos pesticidas quando a União Europeia baniu três neonicotinoides. Eles concluíram que, além dos danos às abelhas, esses venenos podem estar ligados ao declínio das borboletas, pássaros, de insetos aquáticos e possivelmente de morcegos.

Ineficiência Brasileira

O rastreamento dos resíduos no solo, na água e no ar é extremamente limitado no Brasil e não há nenhuma informação pública que traga um diagnóstico realista sobre os impactos ambientais causados por inseticidas.

O secretário de Santa Catarina, Ricardo Miotto confirma a falta de informações.

“Não sabemos a quantidade de fipronil necessária para matar as abelhas, se a morte é repentina ou em longo prazo e se afeta mais animais. Não temos pesquisas”, disse.

No entanto, há no Brasil um esforço para o levantamento de dados. Um exemplo é o Bee Alert, a primeira plataforma de identificação por geolocalização das ocorrências de desaparecimento e morte de abelhas.

Os dados coletados são fornecidos por apicultores, meliponicultores e pela comunidade científica, numa atividade colaborativa.

Entre 2014 e 2017 foram monitoradas mortes de 770 milhões de abelhas em 18 Estados brasileiros. Como nem todos os apicultores utilizam a plataforma, a projeção é que tenham morrido um bilhão e meio de abelhas nesse período.

Em parceria com a Universidade Federal Rural do Semi-Árido, foram coletadas amostras e em 67% dos casos houve envenenamento por agrotóxicos, sendo que, das amostras envenenadas, 92% tinham fipronil do organismo.

Bayer e Basf dizem que produtos são seguros

“A utilização de produtos de proteção de cultivos não prejudicará as abelhas se forem aplicados corretamente e de acordo com as instruções do rótulo”, diz a Bayer.

A empresa também informou que “ensina como o trabalhador rural pode agir quando encontrar uma colmeia na fazenda e como manejá-la a outro ambiente”. A Bayer diz que investe há mais de 25 anos em estudos e projetos que contribuam para a saúde das abelhas, e possui um centro dedicado exclusivamente às pesquisas, o Bee Care Center.

Já a Basf, que deteve a patente do princípio ativo fipronil até 2008, quando perdeu a exclusividade, diz ter um “compromisso com o gerenciamento responsável e ético de todos os seus produtos, desde a descoberta do ingrediente ativo, passando pela distribuição, uso, descarte e reciclagem”.

“O inseticida fipronil é altamente eficiente em baixas dosagens e está registrado em mais de 70 países para o uso em cerca de 100 cultivos, sendo uma ferramenta importante para a agricultura, tratamento de sementes em culturas especializadas e controle de pragas em residências e empresas”.

Segundo a Basf, diversas empresas fabricam e comercializam produtos à base de fipronil. “Se utilizados seguindo as boas práticas agrícolas e as recomendações da Basf na bula, entre elas a não aplicação foliar do inseticida, os produtos aprovados com o ingrediente ativo fipronil são seguros para os seres humanos e meio ambiente, incluindo os polinizadores”.